terça-feira, 16 de abril de 2019

ESCRITO EM COIMBRA À SOMBRA DE MINERVA


HANS CHRISTIAN ANDERSEN ENTRA EM COIMBRA

 
Hans Christian Andersen, um dos mais famosos escritores de todos os tempos, visitou Coimbra em 1866 e deixou escritas as impressões da viagem



Coimbra está colocada numa colina, as ruas umas por cima umas das outras. Muitas casas erguem-se assim três a quatro andares acima de outras. São estreitas as ruas, que torneando a sobem. Altas escadarias de pedra conduzem, por entre edifícios modestos, de uma ruela a outra mais distante. Lojas várias, especialmente livrarias, há na cidade em grande quantidade. Por toda a parte se veem estudantes, aqui um só, de cabeça descoberta, a ler um livro, ali um grupo de braço dado. O traje que usam é pitoresco e faz-nos lembra os de Fausto e Teofrastes. Compõe-se de uma casaca longa e preta e de uma curta capa da mesma cor. A maior parte anda em cabelo, nas ruas e ao longo do rio Mondego. O barrete que alguns trazem é grande e pesado, uma espécie de barrete polaco pendente. Contaram-me que os estudantes, no Inverno, organizam uma vez por mês um espectáculo dramático, para o qual são convidados professores, residentes da cidade e respectivas famílias. Ouvem-se com frequência nas ruas guitarras e serenatas. E com guitarras ou espingardas aos ombros partem também, jovialmente, em cavalos alugados, à caça longe da velha cidade, nos bosques frescos ou nos montes, pelo gosto da vida e da aventura, assim guardando no coração recordações para os dias futuros da velhice. Deste modo, parece a vida correr alegre e despreocupada nesta natureza paradisíaca. Contaram-me, contudo, que no tempo de D. Miguel houve tumultos entre os estudantes, tendo este mandado logo enforcar alguns, o que não era de estranhar nesse tempo. 
O convento de Santa Cruz, que fica na parte baixa da cidade, é digno seguramente de uma visita. Ninguém vive aí e tudo e tudo está em abandono, mas os claustros à volta do pequeno jardim são de uma beleza verdadeiramente romântica, com os seus elegantes arcos em ruínas. Na igreja, de cada lado do altar-mor, erguem-se dois imponentes túmulos com figuras esculpidas em mármore. Aí repousam os reis D. Sancho I e Afonso Henriques. Também aqui se guarda um quadro pintado por Grão Vasco, mas no desenho e cor muito diverso das pinturas que vi em Setúbal. 
Do convento e da igreja as ruas sobem para a Universidade, um edifício grande que ocupa todo o alto da cidade. Aí, por uma das portas da cidade mais ao alto, na muralha da fortaleza em ruínas, entra-se no Jardim Botânico, rico em flores e árvores raras. Grandes palmeiras e magnólias em flor destacavam-se entre uma imensidade de outras árvores de folha e de agulha. Não se via, contudo, vivalma, e quase igualmente desolado era o belo caminho que daí partia por baixo das velhas muralhas da cidade. Erva viçosa e frescas trepadeiras cresciam por toda a parte e, à direita, nas quintas, sobressaíam laranjeiras, grandes ciprestes e sobreiros. Encontrei depois alguns estudantes, todos com os seus tarjes medievais. Um ia só, a ler um livro, três em animada conversa, as guitarras aos ombros. O seu aparecimento nestas paragens causou-me profunda impressão, era como se estivesse a viver noutro século e toda a sua poesia do passado me veio ao pensamento, mas nem de tudo tomei nota. 


Hans Christian Andersen in Uma visita em Portugal em 1866 



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