sexta-feira, 3 de maio de 2019

ESCRITO EM COIMBRA À SOMBRA DE MINERVA


SERENATA NA SÉ VELHA

O CENÁRIO PRÓPRIO DO FADO DE COIMBRA


Todos os estudantes ficaram quietos, parados, como que presos ao eco que aumentava e se repetia


Foi numa noite enluarada. Numa dessas noites “vestidas de melancolia”, que só existem nos versos dos poetas… e em Coimbra. 
Subia lentamente o Quebra Costas. Quando galguei o último lanço da escadaria vi as pedras da Sé Velha envolvidas por uma mancha de luz suave e imóvel, deixando que os meus olhos recortassem nítida, no pórtico da igreja, a figura do Julião, garganta afamada na Academia. Havia serenata. 
A mancha de centenas de capas negras estacionava em grupo, no largo, a escutar em silêncio. A solidão das ruas desertas parecia também escutar. E, a terra inteira estava certamente aguardando a voz daquele estudante. Fiquei preso do encanto da noite doce. Ia ouvir cantar pela primeira vez o fado de Coimbra no seu cenário próprio. 
Bagão, doutor em guitarra, lá estava também, cingindo com amor aquele coração de madeira donde arrancava harmonia de acordes que enchiam os ares. 
No momento em que a figura do Julião, envolto na capa negra, se tornou hirta, como estátua em nicho de igreja, pareceu-nos que se suavizaram ainda mais os tons macios da lua. Então uma voz subiu, elevou-se, enchendo o silêncio:

Passam-se noites inteiras
Sem que me possa deitar…

Melodiosa e branda, a guitarra acompanha o chorado da letra. E, no meio de um silêncio fundo, a voz, de novo ganha volume e ternura.

E a lua já tem olheiras
De tanto m’alumiar!...

A cantiga ouvia-se nas ruas próximas, silenciosas e desertas. Todos os estudantes ficaram quietos, parados, como que presos ao eco que aumentava e se repetia, ao longe, por sobre a fita de prata velha do Mondego.


João Falcato in Coimbra dos Doutores


Nota: João Falcato (1915-2005), antigo estudante de Coimbra, foi contemporâneo e amigo de figuras gradas das nossas letras de quem guardava livros com honrosas dedicatórias, como Almeida Santos (que foi seu caloiro de República, em Coimbra), Mário Soares (a quem apresentou Maria Barroso, com quem se casaria, circunstância que os três relembravam, com humor até em entrevistas), Virgílio Ferreira, Torga, Namora, Alçada Baptista, Eugénio de Andrade etc. de artistas, Bual, Gil Teixeira Lopes e outros. Foi devotado amigo de Sebastião da Gama.


Manuel Simões Julião
(1915 – 1982)


Cantor de Fado de Coimbra que marcou uma época e ficou na memória de quem assistiu às serenatas de rua dadas na Velha Alta de Coimbra, como esta, na Sé Velha, descrita por João Falcato

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