SERENATA NA SÉ VELHA
O CENÁRIO PRÓPRIO DO FADO DE COIMBRA
Todos os estudantes ficaram quietos, parados, como que presos ao eco que aumentava e se repetia
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Subia lentamente o Quebra Costas. Quando galguei o último lanço da escadaria vi as pedras da Sé Velha envolvidas por uma mancha de luz suave e imóvel, deixando que os meus olhos recortassem nítida, no pórtico da igreja, a figura do Julião, garganta afamada na Academia. Havia serenata.
A mancha de centenas de capas negras estacionava em grupo, no largo, a escutar em silêncio. A solidão das ruas desertas parecia também escutar. E, a terra inteira estava certamente aguardando a voz daquele estudante. Fiquei preso do encanto da noite doce. Ia ouvir cantar pela primeira vez o fado de Coimbra no seu cenário próprio.
Bagão, doutor em guitarra, lá estava também, cingindo com amor aquele coração de madeira donde arrancava harmonia de acordes que enchiam os ares.
No momento em que a figura do Julião, envolto na capa negra, se tornou hirta, como estátua em nicho de igreja, pareceu-nos que se suavizaram ainda mais os tons macios da lua. Então uma voz subiu, elevou-se, enchendo o silêncio:
Passam-se noites inteiras
Sem que me possa deitar…
Melodiosa e branda, a guitarra acompanha o chorado da letra. E, no meio de um silêncio fundo, a voz, de novo ganha volume e ternura.
E a lua já tem olheiras
De tanto m’alumiar!...
A cantiga ouvia-se nas ruas próximas, silenciosas e desertas. Todos os estudantes ficaram quietos, parados, como que presos ao eco que aumentava e se repetia, ao longe, por sobre a fita de prata velha do Mondego.
João Falcato in Coimbra dos Doutores
Manuel Simões Julião
(1915 – 1982)
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