terça-feira, 29 de janeiro de 2019

ESCRITO EM COIMBRA À SOMBRA DE MINERVA

ROUBAR O BADALO À CABRA


Capa do jornal O Badalo, publicado no dia 25 de novembro de 1952, onde se retrata, entre outros assuntos da irreverência estudantil, os vários roubos do badalo da Cabra


Roubar o badalo à Cabra* era mais do que deixar sem voz a Universidade: era arrancar a língua ao inimigo! 
Foi por volta de 1860 que pela primeira vez teria sido roubado o badalo à “cabra” (sino da torre da universidade). Trindade Coelho no seu livro “In illo tempore”, editado em 1902, refere-se desta maneira ao acontecimento: 
No tempo em que eu andava em Coimbra, ainda a proeza dos que roubaram uma noite o badalo à Cabra era por lá muito falada! 
Eu até morei na casa onde o badalo esteve escondido, e que era, e ainda é, a chamada “Casa da Ilha”, - uma casota isolada na confluência das ruas da Trindade e dos Militares, e onde morou também Tomás Ribeiro. 
(…) 
Ora dos mil sinos que há em Coimbra, não conheceríamos nós o som de nenhum, - mas o da Cabra, que nas vésperas da aula às 6 da tarde, e nos dias de aula às 7 da manhã, se alastrava sobre Coimbra e diziam que se ouvia em Tentúgal. 
(…) 
Um dos outros sinos, que tocava por alto em dias de capelo, era o Cabrão; mas esse, coitado, não tem lenda, nem os outros. 
(…) 
E nunca me há-de esquecer que um dia, esperando nós um feriado e contando com ele como coisa certa, pusemo-nos todos, à noitinha, de ouvido à coca das 6, a ver se a Cabra tocava – e não tocou! 
(…) 
Roubar o badalo à Cabra era mais do que deixar sem voz a Universidade: era arrancar a língua ao inimigo! 
Foi, pois, o caso de três estudantes de Direito, todos eles pândegos de truz, e valentões como os que o são, assentaram um dia arranjar um feriado. 
- Como? 
- Rouba-se o badalo à Cabra! 
E foram eles mesmo que de outra vez escalaram o muro dos Arcos do Jardim, que lembra o Arco das Águas Livres, e tiraram as setas ao S. Sebastião deixando-lhe aos pés este letreiro: 
- “Basta de tanto sofrer!” 
E uma bela noite eis os nossos heróis a escalarem a muralha perto da Porta de Minerva, mais ágeis que três macacos! Uma vez lá dentro, - chave na fechadura da torre (uma chave falsa que eles tinham arranjado num ferro-velho, e que servia que nem de encomenda!) – e mesmo às escuras, toca a subir esse caracol estreito, que parece que não tem fim! – Subiram; lá em cima, com todo o panorama de Coimbra, à roda, extasiado debaixo do luar, foram-se aos vergalhos da Cabra e serraram-nos; - serrados, apagaram com mil cuidados todos os vestígios da empresa (mas não cautelosamente que não ficasse na torre o lenço de um, que foi depois o começo do corpo-de-delito quando se procurou descobrir os heróis) – e apossados enfim do pesado badalo, desceram com o trambolho pelo mesmo caminho – e sumiram-se! Era uma vez o badalo da Cabra! 


Trindade Coelho in In illo tempore. Paris-Lisboa: Livraria Aillaud & Cia., 1902 


*A Cabra tocava para anunciar as aulas ou o recolher dos estudantes no final do dia. Representava algumas obrigações odiadas pela Academia. O seu roubo, simbolicamente, era um ato de rebeldia contra essas obrigações, daí a expressão “arrancar a língua ao inimigo!”. 



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